quinta-feira, 23 de julho de 2009

As chuvas da roseira

Chuva é sempre igual: fisicamente, não passa de água que cai do céu. Mas artistas preferem hipóteses a teses; não crêem que algo como a chuva seja, simplesmente, água que cai do céu. Que o diga Tom Jobim, autor da canção “Chovendo na Roseira”, faixa 13 do álbum “Elis & Tom” (Philips, 1974). Valendo-se de um clássico compasso, Jobim dedilha a viagem da água junto de Elis, que aproveita toda a vocalidade das sílabas. A cantora deve ter inspirado Kevin Mahogany e seu consonantal inglês. Explica-se aí os solfejos do jazzista na sua versão para “Chovendo na Roseira”. Passeando por diversas notas, ora junto do piano, ora junto do saxofone, Mahogany lidera os ataques e a condução de Double Rainbow no álbum homônimo de 1993. Afastadas por alguns anos, as canções contam histórias diferentes de uma mesma chuva.



As peculiaridades de cada versão se mostram a cada técnica usada. Mahogany canta tal qual um líder de big band, muito embora tenha mais suíngue — próprio à sua escola de scat singers, cuja mestra é Ella Fitzgerald. Sua voz de barítono intenta em chefiar os espaços dos acordes, mas a suavidade dá sutileza às camadas Voz e Instrumentos. Assim, a chuva se abre a cada vez que Mahogany sobe e desce o tom. Do baixista ao baterista, toda a banda trabalha em improvisos momentâneos que prescindem um perfil melódico — e muitas vezes ela se perde entre manobras e virtuoses, diminuindo o laço com a música original. A roseira é alvo de gotas suaves e diversas, advindas em boa parte da força do piano de Kenny Barron, livre e insistente a cada virada. Mais solto, ainda que nem tão certeiro e dosado quanto o de Jobim.

De qualquer maneira, são ataques leves que não machucariam uma flor. Toques certamente inspirados, também, na bateria de Paulo Braga, nas cordas de Hélio Delmiro e no teclado de César Camargo Mariano. O trio é parte do quadro de músicos que acompanham Elis e Tom no álbum, arranjado por Aloysio de Oliveira. Em Chovendo na Roseira, Tom Jobim brinca com os pingos de início; faz deles respingos como as pinçadas de Tico-tico; e deságua num riacho de notas, onde as gotas e notas úmidas já não são mais de Luísa, Paulinho ou João; são de ninguém. O perfeito casamento de letra e música formando canção, sempre embalado pela idílica flauta doce, emulada no piano elétrico. O violão em contra-tempo e o tímido baixo são os maiores resquícios — aqui, mais como vícios do início em João Gilberto e no Cool Jazz — da outrora vanguarda Bossa-nova.



A originalidade criada sobre um repertório básico, no caso a valsa em 3 por 4, é tônica não só de Chovendo na Roseira, mas sim de todas as faixas do disco Elis&Tom. Por sua vez, Mahogany podia chover no molhado e prezar por uma releitura fiel em detrimento de uma nova roupagem à canção, mas não o fez. Assim como Tom, percebeu que uma chuva não é uma só para um artista, mas quantas quiser contar, tocar e cantar.

*Crítica escrita para o curso "Crítica e música: uma reflexão sobre as artes da imprensa" e postada com as devidas e pertinentes correções da professora Liliana Bollos.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O Festival da Boa Música

É ritmo de festa! Festa em silêncio, pois já basta a sua época de adolescente “badernista” fazendo zona na sala de cinema. A festa é nessas salas, tamanha quantidade de festivais que se projetam por aqui: Panorama Francês, SP Terror, Latino-Americano e o InEdit Brasil, que acabou a 5 de julho aqui em sampa. A cidade já é parte do itinerário de muitos festivais que correm o mundo, mas ainda há o que melhorar em termos de divulgação, expansão do circuito, preços e eventos adjacentes. Que seja: alguém aí já disse que pra começar uma caminhada é preciso o primeiro passo — ainda que não tão preciso.


Mas foi um tiro certeiro trazer o InEdit pra cá. Iniciado em Barcelona, o festival junta a fome com a vontade de comer: cinema e música. Documentários musicais dão a cara nas telas e participam também de competição — como aniversário de loja,“onde quem ganha é você”. Somam-se a esse motivo os feromônios sonoros exalados pelo Brasil e, em especial, por São Paulo e os filmes sobre música e artistas que pululam nos teasers (de Ratos de Porão a Arnaldo Baptista). O tiro foi em cheio, lembrando o logo do Public Enemy, tema do filme cujo subtítulo é Welcome to Terrordome.

O Public Enemy são caras maus. Eles não acreditam na Malu Magalhães nem no Arctic Monkeys. Não acreditam no Bush nem na Guerra do Iraque. Não acreditam no Elvis — e desconfio que nem no Michael Jackson. Mas não são maus por que são niilistas. São maus porque descrêem de tudo isso com argumentos e samples que revolucionaram o hip hop. Isso fica visível com o loop inicial em “Show’em Watcha Got”, tocado logo no início do filme e com a letra de “Don’t Believe the Hype”: um não é a marcação do tempo fria e sem graça, o outro não são palavras regurgitadas, mas um mantra repetido. A revolução do PE, contudo, para por aí. Ainda que ela exista na maioria das canções do grupo, o diretor Robert Patton-Spruill parece ter se esquecido disso na fita. Pouco se fala de como o Public Enemy alçou o rap pra fora dos guetos justamente por entenderem e criticarem o mundo fora dali. Este é o outro alicerce para as mudanças drásticas no gênero, levadas a cabo também por Beastie Boys e por Run DMC.



A sonoridade dessa leva influenciou não só o hip hop, mas o rock e a música eletrônica. Samples dos BB são base em muitas pick-ups. A sonzeira em overdrive do PE ecoou em um dos guitarristas mais originais do fim dos anos 90, Tom Morello, e é impossível dizer que o som do RATM não é fruto direto dessa mistura de rap, rock e outras cositas más. É a marca de Terminator X e toda a banda do PE, inclusive os SW1, os B-boys fardados. Apresentar a banda com depoimentos variados e entrevistar outros músicos com certeza foram o trunfo do filme, que peca por vezes em cortes inexplicáveis e por mostrar apenas um show de Chuck D e companhia, o do SWSX de 2004.

Em favor de uma crueza maior, Welcome to Terrordome é uma fita que não preza pela estética dos detalhes ou pelos planos para delimitar o produto documentário. Segue a mesma linha de outro doc assistido por quem vos escreve: End of the Century. Enquanto o primeiro tem a banda no título, neste acontece o contrário. Explica-se: se para o historiador Eric Hobsbawm o século XX começa em 1914 e termina em 1991, para os Ramones ele começa ali nos anos 50 e acaba em 77, ano da explosão da explosão da banda e do punk rock. Mas é nesse ponto que ele recomeça, como um ciclo, como fruto de uma luta entre classes — pois não era o punk, originalmente, válvula de escape para os proletariados e marginais britânicos? O documentário que conta a trajetória da banda de Joey, Johnny, Dee Dee, Tommy, Marky e CJ traça todo um enredo do movimento criado e criador da banda, bem como de seus reflexos históricos. Não economiza, para isso, em depoimentos e cenas de arquivo.



O ingresso vale só por ver Joe Strummer mencionando os Ramones com o mesmo respeito com o qual Johnny lembra do Clash. É prazeroso saber que, embora separados por um oceano e muitos, muitos acordes, as duas bandas dividiam histórias do underground. E ainda hoje se pergunta (e se responde e se pergunta mais) como um movimento cultural pôde sair dos subúrbios e influenciar inúmeras manifestações, artísticas, não só na música, ou de qualquer outro cunho, tal qual a publicidade, como bem lembra uma atendente do CBGB no filme. O bar é cenário para uma das melhores seqüências do filme: quando os Ramones discutem, sobre o palco, qual música tocar. Dee Dee, que mais lembra um Gil Brother misturado com Sid Vicious, insiste na sua escolha. Joey não quer. Johnny manda calarem a boca. Tommy... bem, Tommy não era essencial pra banda — segundo Johnny e Dee Dee. Entre fucks e shits eles resolvem por tocar Blitzkrieg Bop.

As imagens antigas e as diversas entrevistas dão um panorama cronológico da banda, e a montagem consegue transmitir o tempo sem tornar-se maçante. A sucessão de acontecimentos não é apenas fator contextual: está presente ali a figura de um Joey inibido e retraído em seus um metro e tantos de estranheza; um Johnny carrancudo, que não sorri para manter a aparência de manager; um Dee Dee debochado e vítima do seu próprio deboche; um Marky agradecido e Ramone até hoje. Uma banda que iniciou uma nova era na música, em que a vontade de fazer supera o saber fazer, e que foi capaz (talvez isso seja o mais difícil) de se reconhecer como precursora deste novo tempo. Sem impado, Dee Dee agradece a si próprio pela placa dos Ramones na Rock and Roll Hall of Fame. Com certeza não os únicos, mas sim os maiores culpados por suas poucas notas, cabelos de tigela e jaquetas de couro.

A música agradece aos Ramones e ao Public Enemy. O cinema agradece a música, agora não pelas trilhas ou sonoplastia, mas pelos temas. E São Paulo diz obrigado a todo mundo, porque o cinema está em festa (no lineup, o InEdit, claro) e o importante é fazer uma social.